Houve um tempo em que fusões corporativas aconteciam quando as empresas brasileiras eram adquiridas por grandes multinacionais. Uma época em que os produtos estrangeiros eram melhores que os feitos aqui, e os países desenvolvidos ditavam as inovações. Era um período, não mais do que três décadas atrás, em que o Brasil estava fechado para o mundo e exportava tão-somente matérias-primas. Pois recentemente, empresas nacionais passaram a adquirir companhias estrangeiras, artigos feitos aqui tornaram-se referências para o mundo todo, e o Brasil passou a exportar criações inéditas.
Soluções desenvolvidas com a inteligência brasileira, como o pagamento do imposto de renda pela internet ou a urna eletrônica, por exemplo, chegaram muito tempo depois ao EUA, berço de grandes inovações tecnológicas. Com uma maior competência adquirida após a abertura comercial, na década de 1990, os profissionais brasileiros também ganharam visibilidade. Já é grande o número de executivos que assumem postos-chaves em multinacionais. Segundo dados do Ministério do Trabalho, existem mais de 2 milhões de brasileiros trabalhando legalmente no exterior. A flexibilidade para se adaptar às rápidas mudanças de cenário e o arrojo para assumir riscos, além de uma alta capacidade de construir relacionamentos duradouros, são algumas das características que fazem do executivo brasileiro um jogador diferenciado no cenário global, segundo o presidente da Simon Franco Soluções Inteligentes, Simon Franco. ”Temos a capacidade de pensar fora da caixa”, avalia Renata Tubini, diretora de RH das unidades internacionais e de escolas de negócios do banco Itaú, que acaba de voltar de uma temporada nos EUA. “Em ambientes adversos, onde é preciso levar algo novo, somos mais valorizados”, completa.
Mas nem mesmo todas essas qualificações no currículo, ou as realizações que elevaram o padrão de excelência nacional, salvam os nossos executivos de um certo complexo. Numa pesquisa desenvolvida no ano passado pela Fundação Dom Cabral, para entender como os profissionais brasileiros lidavam com a dedicação ao trabalho, em comparação com profissionais de outras nacionalidades, ficou evidente que nossos executivos trabalham mais horas nas multinacionais que os colegas estrangeiros. Estender o expediente tem como meta compensar uma certa pressão oculta por um desempenho acima da média. “Eles sentem que precisam ter desempenho melhor que seus pares para compensar alguns rótulos”, observa a pesquisadora Betânia Tanure, responsável pela pesquisa.
Mas que rótulos são esses que os brasileiros tentam compensar para equilibrar sua estima? Uma série de complexos internalizados, que começam pelo sentimento de inferioridade por ser um país em desenvolvimento, até as pechas populares do malandro ou do herói sem caráter de Macunaíma, de Mário de Andrade, explicam um pouco dessa identidade torta. Some-se ainda a pouca idade do Brasil enquanto nação, resquícios de uma falta de liberdade com a ditadura e ainda a herança de uma cultura escravocrata – o Brasil foi dos últimos países a abolir a escravatura. “Embora haja avanços significativos, a auto-estima do brasileiro ainda é baixa”, reconhece Betânia Tanure.
Em todo caso, Renata Tubini, diretora de Rh do Itaú, faz outra leitura dessa disponibilidade dos brasileiros para trabalhar mais. “Quando ganhamos uma oportunidade, não queremos deixar passar”, avalia. “Vamos para fazer acontecer, é o momento que temos e queremos viver com essa dedicação adicional”, reflete.
Seja como for, em algum lugar do nosso inconsciente há registros de rótulos negativos que já nos foram delegados, como a famosa frase atribuída na década de 1960 ao líder francês Charles De Gaulle. Ele teria dito “o Brasil não é um país sério”, num conflito sobre a pesca na costa brasileira que envolvia os inte-resses dos dois países. Até hoje não se sabe ao certo se De Gaulle disse ou não a famosa frase. Mas volta e meia é lembrada como se de fato ele tivesse razão no argumento.
Num trabalho desenvolvido no ano 2000, pelo ex-ministro Luis Carlos Bresser Pereira, intitulado “Identidade e auto-estima do brasileiro”, ele cita, por exemplo, uma piada comum sobre o Mercosul, naquele período. “Sabe quais são os três ativos do Mercosul? A modernidade uruguaia, a modéstia Argentina, e... a confiabilidade brasileira.” A ironia da anedota demonstrava a identificação com o padrão da malandragem na mesma proporção da arrogância argentina.
Um líder como exemplo
Do ano 2000 em diante, algumas coisas mudaram. O Brasil elegeu um presidente que veio da base da pirâmide, a estabilidade econômica proporcionou o crescimento e a expansão das companhias nacionais pelo mundo e o País aumentou o número de empregos. Um alento positivo que melhora a esperança geral. “O presidente Lula responde ao projeto de um mito – e por trás de todo mito há uma certa parcela de verdade”, diz José Roberto Heloani, professor e pesquisador da FGV sobre Psicologia do Trabalho e Saúde do Trabalhador. Entre altos e baixos, o presidente manteve uma aprovação popular acima dos 50% em seus dois mandatos. No mês de setembro, o presidente tinha o apoio de 80% da população.
Heloani participou da aplicação de duas pesquisas em favelas, uma no Rio, em 2001, e outra em São Paulo, no ano passado. Na primeira, a maioria dos jovens tinha como desejo trabalhar de informante da polícia ou como ajudante de traficantes. Na segunda, apareceram, ainda que timidamente, registros de jovens carentes que desejavam se tornar executivos, advogados ou seguir algum curso técnico. “Já há uma mudança de paradigma”, explica Heloani. “Ou seja, eles já enxergam a possibilidade de chegar a outros lugares mesmo que sejam de outra origem social”, complementa.
Evandro Vieira Ouriques, pesquisador do Núcleo de Estudos de Comunicação e Consciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que a passagem de uma pessoa de origem humilde pela presidência muda definitivamente o que ele chama de “economia psíquica” do brasileiro. “A informação que circula na psique já registra que um operário pode chegar à presidência”, diz.
Some-se ao carisma de um líder os frutos da estabilidade política, iniciada na década de 1980, e econômica, na década de 1990, e ganha-se um quadro mais positivo. Uma pesquisa recente captou esse alento otimista do brasileiro com o futuro. Um estudo divulgado pela Gallup World Poll, feito em 132 países, mostrou o Brasil na liderança quanto ao otimismo com o futuro. De zero a dez, os brasileiros ficaram com a nota 8,78, no que diz respeito à expectativa com o futuro. Se considerados apenas os jovens, a nota ultrapassava os 9,7. “O jovem brasileiro já não acha que somos competentes apenas no futebol”, lembra José Heloani.
Luz e sombra
Se por um lado a tal malandragem brasileira ganhou um tom pejorativo como a sombra do brasileiro, por outro, é a base de uma característica muito valorizada no mercado de trabalho: é o outro lado da moeda no chamado jogo de cintura e criatividade para sair de situações difíceis. “Nós temos uma dose alta de percepção e improviso, o que nos faz jogar sempre no ataque, arriscando mais”, diz o headhunter Simon Franco.
O nosso arrojo, diz ele, confere aos brasileiros uma capacidade maior de colocar as coisas em prática. Franco conta que certa vez, em uma cúpula empresarial na Europa, o líder de uma grande corporação até brincou com esse fato, dizendo que os brasileiros estavam lhe causando problemas. “Ele disse que muitos projetos que eram propostos e considerados inviáveis acabavam sendo colocados em prática quando enviados para cá.” Em tempos de inovação e empreendedorismo, esse potencial brasileiro para criar é uma matéria-prima bastante requisitada pelo mercado.
“O Brasil sempre impressionou pelo seu tamanho e agora chama atenção também pelo seu potencial e pelo seu povo”, avalia o diretor de Planejamento, Finanças e Operações Internacionais da Perdigão, Antônio Carlos Zanella, há dois meses morando na Holanda, onde a empresa está absorvendo uma fábrica. Se a formação da auto-estima acontece pelo olhar do outro, há sinais de que alguns rótulos negativos começaram a caducar, embora persistam na mente dos brasileiros. Rubens Bisi, diretor de Operações Internacionais da Marcopolo, empresa brasileira presente em 50 países, conta que há algumas décadas, quando sentava à mesa para negociar com um americano, este ficava curioso para saber se aqui tínha-mos aeroporto ou aviões, a despeito do fato de ter sido um brasileiro, Santos Dumont, o pai da aviação. “Hoje esse tipo de pergunta não existe mais e sentamos para negociar em nível de igualdade”, conta Bisi.
Com quase 40 anos de trânsito internacional, o executivo sente que a imagem do Brasil no exterior melhorou muito nos últimos anos, por realizações como o pioneirismo na pesquisa sobre o etanol e agora pelas descobertas no setor de petróleo. “Se antes, os EUA e a Europa não sabiam se aqui havia aviões e ônibus, hoje, eles sabem e consomem nossos produtos”, diz Bisi.
Pois é esse confronto com os pares estrangeiros que nos faz reconhecer o que de melhor temos. Quando o jogador Raí voltou de uma temporada na França, ele disse que não vira no exterior o que os brasileiros tinham de sobra: “joie de vivre”, ou “alegria de viver.”
A diretora de Marketing para a América Latina da Motorola, Loredana Mariotto, entende que a facilidade do brasileiro em se adaptar é um diferencial do nosso povo. “Isso eleva muito o potencial profissional do Brasil, essa capacidade de conviver com diferenças. E isso se aprende com a miscigenação existente aqui”, pondera.
Outro ponto destacado por Loredana é o fato de o brasileiro ter vivido muitas agruras na economia, altos e baixos que nos deram anticorpos para situações difíceis. “Essa tolerância, essa flexibi-lidade, vai ser, daqui em diante, muito estratégica. Esse profissional aberto e que trabalha com diferentes culturas já tem uma vantagem competitiva”, considera.
Falta de estima ou rindo de si mesmo?
Um dado curioso nesse debate, entretanto, é o fato de o próprio brasileiro contribuir na propagação de suas misérias. “Falamos com naturalidade de nossos defeitos, algo que outros povos não fazem”, aponta Betânia Tanure, da Fundação Dom Cabral. Rubens Bisi, da Marcopolo, concorda. Para ele, o brasileiro tem o costume de se colocar numa posição inferior em relação aos povos de outros países sem mesmo ter justificativa para tal. “Os argentinos não fazem isso e nunca viveram contextos tão melhores que os nossos”, pondera. Bisi também crê que as dimensões continentais e a grande miscigenação dificultem a percepção de uma identidade, o que abala a auto-estima de quem vive aqui.
Porém é essa miscigenação e a combustão cultural que resulta dela o combustível que se procura na pós-modernidade, ou no futuro de uma sociedade. Em recente passagem pelo Brasil, o sociólogo francês Michel Maffesoli, um dos maiores estudiosos sobre o assunto, disse: “O Brasil carrega a construção de ‘patchwork’ da qual a pós-modernidade se alimenta”. A falta de percepção de seu próprio valor acarreta não só num autoflagelo, mas também na falta de confiança para criar mo-delos próprios de gestão que considerem as idiossincrasias da nossa cultura. “As empresas brasileiras têm importado modelos estrangeiros de gestão, extremamente normatizados, fora da nossa realidade”, diz Elza Póvoa, doutora em Psicologia e autora do livro Esquizofrenia Social.
Para Elza, as empresas têm uma grande oportunidade de abrir espaço para o desenvolvimento, aproveitando o que há de melhor aqui. “O grande valor das empresas é ser esse contêiner das possibilidades das pessoas. Você pode ser muito criativo, mas, se não tiver espaço para isso, a pessoa morre”, diz. O sócio-diretor da consultoria TopBrands, Marcos Machado, lembra, contudo, que há um longo caminho a percorrer até chegar a um ambiente favorável, no qual os valores do povo brasileiro beneficiem a sociedade como um todo. “Ainda temos um comportamento cultural de pouca disciplina”, pondera. O País ainda tolera, por exemplo, certas dificuldades como as ineficiências do Estado, que outros povos não aceitam.
Mas, reconhece Machado, há um processo em curso, com mudanças significativas que devem ficar ainda mais evidentes daqui em diante. Os publicitários que sempre se antecipam às mudanças comportamentais já estão tratando de trazer essa ressonância à tona, por meio de campanhas como a da Vale e da Alpargatas. Tomara que suas mensagens que se traduzem no orgulho de ser brasileiro se internalizem na alma de cada um. Só os brasileiros podem falar mal deles mesmo Um recente comercial produzido pela agência Almapp BBDO, para as sandálias Havaianas, puxou um velho dilema do brasileiro.
O ator Lázaro Ramos sentado sob um quiosque de praia joga conversa fora com o dono do recinto. De frente para o mar, os dois se perguntam: “Como um país tão bonito pode ter tantos problemas?” A prosaica reflexão é então interrompida por um turista argentino, que concorda com os dois e emenda: “Eso mismo, como um pais tan bonito tiene tantos problemas?” Os dois brasileiros se enfezam e rebatem: “Você está louco? Não tem problema nenhum aqui”.